A história de Apenas um Qualquer. Capítulo VIII

A Descoberta do Fogo


No final de minha média infância*, muitos elementos da natureza, corriqueiros até, passaram a despertar minhas mais profundas curiosidades. O mais significativo deles foi, sem dúvida nenhuma, "o fogo".
Até então, não parecia haver maiores atrativos naquela bruxuleante entidade que os antigos consideravam como uma das substâncias básicas da ordem natural, juntamente com a água, o ar e a terra. Todavia, de uma hora para outra e sem nenhum aviso, uma irresistível obsessão inundou minha mente. Não havia força nesse mundo que me conseguiria impedir de disseminar as hipnóticas chamas por onde quer que os meus pés pisassem.

Passei a incendiar todos os objetos combustíveis que meus olhos pudessem encontrar e minhas mãos pudessem alcançar. Obviamente não carbonizaria nenhum documento importante de meus pais, ou algum móvel ou tapete da casa (minha obsessão era forte, mas não era autodestrutiva). Entretanto, a incineração foi o destino de tudo o que parecia não ter mais serventia. Tornei-me um mestre na arte de reduzir os elementos a cinzas.

Tal incendiário virtuosismo cobrava o seu preço. Não havia mais emoção na queima de simples caixas de papelão, não havia mais satisfação em observar os objetos de plástico, couro ou outros materiais ardendo nos fundos de meu pátio. Minha alma ansiava por um desafio maior, algo que mostrasse ao mundo meu flamejante ofício e desse sentido à minha piromaníaca existência.

Procurei pelo objeto que encarnaria a minha mais nova e destrutiva obra. Vasculhei pelas ruas de minha vizinhança, mas nada encontrei que me estivesse acessível. Já estava pensando em desistir da alucinada busca quando, para minha absoluta surpresa, percebi que havia uma árvore na calçada, entre o nosso terreno e o do vizinho, que possuía todas as qualidades essenciais para o meu intento. Ela era uma grande e velha árvore semi-oca, forrada com a serragem de seu apodrecido cerne. Não poderia ser melhor!

Era início da noite de um quente dia de domingo e a umidade do ar era baixa, o que certamente tornaria o espetáculo mais grandioso. Aproveitei-me do baixíssimo movimento na rua e dei princípio ao pirotécnico evento. Entrei correndo para dentro de casa e, numa fresta da janela, pus-me a observar minha criação. Em pouco tempo o fogo tomou conta do ressequido vegetal e as labaredas tomaram as alturas.

Mal cabia em mim de tanta emoção. O fabuloso archote gritava ao mundo minha conquista. E a noite se fez dia. Como um radiante farol, atraía os olhos dos que passavam e declarava a imortalidade de meus feitos. E quem tinha olhos, viu.

Pude ver o pavor e o assombro nas faces dos transeuntes. Sobretudo quando o fogo, que alcançava vários metros de altura, consumiu o encapamento da fiação da rede de distribuição de energia elétrica, e lançou os eletrificados condutores em um terrível balé de curtos-circuitos e faíscas.

O prodigioso espetáculo atingira sua apoteose. Nem mesmo Nero presenciara tamanho esplendor.

Em pouco tempo, as forças policiais e corpo de bombeiros chegaram ao local para controlar o que pensavam ser um misterioso incidente. Quase imediatamente, voei para baixo de minha cama e lá permaneci por muito tempo, meditando sobre meu ato e a relação custo-benefício de minha obsessão.

Devo admitir que as reações da população local me surpreenderam e, embora nunca tenham descoberto o autor do lendário feito, meus instintos incendiários foram duramente sufocados. Contudo, ainda me restara um pouco. E, juntamente com uma caixa de fósforos, ateava um foguinho aqui, um foguinho ali, coisa pouca, mas suficiente para acalmar minha maníaca vontade.

Certo dia, ao entrar em uma peça anexa a nossa casa (um pequeno galpão que existia na época) percebi que havia uma pilha de jornais e revistas em cima de uma mesa, pilha que quase alcançava o forro, feito de madeira. Procurei em meu bolso e lá estava ela, minha companheira, a caixa de fósforos.

Automaticamente lancei a pequena chama na lateral da pilha, para, logo em seguida, apagá-la. Não era minha intenção iniciar um fogo de maior tamanho naquele local, queria simplesmente chamuscar as pontas dos jornais. E fui brincando, e cada vez que ateava fogo nas folhas demorava mais para apagá-lo, só para exercitar meu controle sobre as chamas.

Obviamente o inevitável aconteceu. Em certo momento, minhas habilidades foram insuficientes para controlar as labaredas e o fogo começou a se espalhar pilha acima, incontrolavelmente. Lembranças daquele marcante dia com a árvore vieram à minha mente. Eu já podia até ouvir as sirenes dos bombeiros e da polícia em frente à minha casa.

Despenquei em profundo desespero. Estava sozinho e não fazia a mínima idéia de como controlar aquela besta selvagem que ameaçava consumir meu lar. Para minha mais redentora sorte, havia uma mangueira estrategicamente posicionada de modo a que eu tropeçasse nela. Sem dúvida não era meramente obra do acaso (nenhum lunático acredita no acaso).

Saí enlouquecidamente à procura de uma torneira com adaptador para mangueira, o que miraculosamente encontrei bem ao lado do galpão (normalmente minha mãe retirava esses adaptadores, o porquê eu não sei).
Consegui apagar o fogo bem a tempo de o impedir de queimar o teto.

Totalmente encharcado e ainda trêmulo, refleti sobre esse desesperado acontecimento. Pude constatar que me havia curado completamente da incendiária obsessão. A partir daquele dia troquei de elemento favorito, passei de admirador do fogo para fã incondicional da água.

De fogo, bastava-me o do fogão.


*Divido minha infância em baixa (0-3 anos), média (4-7 anos), alta (8-11 anos) e altíssima (12 anos em diante), para fins de enquadramento histórico.

4 comentários

Marco em 26 de setembro de 2011 às 14:17

quando era criança também gostava de brincar com fogo

http://rocknrollpost.blogspot.com/

Anônimo em 26 de setembro de 2011 às 14:33

Eu já nem quando criança brincava com fogo, mas lido com outro tipo de fogo todo dia.. O meu signo me faz ter a característica de me incendiar de raiva a cada dia!
http://lollyoliver.wordpress.com/

Davi Drummond em 28 de setembro de 2011 às 15:10

adorei os níveis da infância =D

você escreve mto bem \o/

fogo é sempre instigante mesmo =D

www.foiporquerer.blogspot.com

Olivaras Brazil em 28 de setembro de 2011 às 22:25

Ótimo blog , parabéns!

www.olivarasbrazil.blogspot.com

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