O Perigo


O perigo, em linhas gerais, é um sujeito muito misterioso. De certa forma ele é bem misterioso em linhas específicas também.

Ele sempre está onde ninguém espera que esteja. Pode-se dizer que ele é um grande intrometido, um penetra desordeiro, um terrorista disfarçado de criancinha.

É bem verdade que o perigo muitas vezes está onde todo mundo espera que esteja, e ainda assim existem aqueles que vão lá dar uma encarada nele e, de vez em quando, quebrar a cara.

Esses lugares, onde o perigo costuma trabalhar sem disfarce, freqüentemente estão bem sinalizados com uma plaquinha medonha, quase sempre com o desenho de uma caveira e com uma frase ameaçadora do tipo "RISCO DE MORTE".

Porém, aos mais desavisados, o perigo ainda tenta abocanhar colocando placas de "RISCO DE VIDA" nos lugares onde trabalha, fazendo com que indivíduos sedentos por mais vida (e com essa crise toda quem resistiria se arriscar a ganhar um pouco mais de vida?) acabem por encontrar a morte, o que é o fim da picada (mesmo que a morte não seja por picada).

Sabendo dessas coisas e temendo aquelas outras tantas que minha ignorância eficientemente abrange, passei a estudar o perigo na tentativa de evitar o perigo de encontrar o perigo.

Infelizmente ele parece estar em todos os lugares. Esses dias, enquanto caminhava, ouvi alguém dizer "é aí que mora o perigo!". A conversa não era comigo e somente ouvi aquela frase no ar, mas não perdi tempo e tratei logo de anotar corretamente o endereço do perigo e de traçar uma rota mais segura.

Como já ouvi muitas pessoas dizendo a mesma frase em diversos lugares, acredito que o perigo seja, antes de tudo, muito rico, já que parece ter residências espalhadas por esse mundo afora.

Entretanto, apesar de todo o perigo, cheguei à conclusão de que o melhor a se fazer é não pensar muito no perigo, só o suficiente para não esbarrar nele, pois caso se pense demais, de forma obsessiva ou maníaca compulsiva, corre-se o risco de se enlouquecer abrupta e absolutamente. E isso, por si só, já é um grande perigo.

Sem noção


Andei sem noção alguma. Levantei da cama e em poucos passos acertei em cheio a parede. Acordei sem noção de distância.

O cão que se rasgava em latidos na casa ao lado, presumi que sofria de Latinismo. Pensei sem noção de significado.

Vi um padre na rua, achei que precisava de uma benção. Pedi uma unção, uma das grandes, que me curasse da falta de noção, pedi-lhe uma unção máxima. Pedi-lhe a extrema unção. Agi sem noção religiosa.

Faminto, entrei sem perceber em um restaurante caríssimo, entrei no primeiro que vi, e comi como um rei. Comi sem noção de preço.

E no chique restaurante paguei o pato. Paguei também todos os outros animais e vegetais que devorei.Paguei sem noção de valor.

Trabalhei muitas horas extras para saldar minha dívida. Trabalhei sem noção de tempo.

Sem noção do que fazia, fui viajar. Viajei sem noção de destino.

Escalei montanhas, sem noção da altura. Atravessei rios repletos de crocodilos, sem noção do perigo. Tentei voltar para casa, mas não tinha noção de onde morava.

Caminhei pela cidade, sem noção do cansaço. Tentei entrar em um táxi que vi, mas era um táxi de brinquedo. Agi sem noção de tamanho.

Finalmente encontrei minha casa. Demorei duas horas para colocar a chave na porta. Havia perdido a noção de profundidade.

Caí na cama e a ocupei totalmente, sem noção de espaço. Dormi por dias, sem noção do meu sono.

Acordei e escrevi esse texto. Sem noção de ridículo.
 
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