A História de Apenas um Qualquer. Capítulo IV

O Enigma do Ônibus

Certo dia, no final de minha baixa infância*, eu e minha mãe voltávamos para casa conduzidos por um veículo do transporte público municipal quando em minha mente uma dúvida perturbadora despontou:
- De que forma pode o motorista saber para onde vai mergulhado nessa imensidão de ruas e avenidas?

Na época, as ruas e avenidas de minha cidade pareciam fazer parte de um labirinto infernal, sempre à espreita de um aventureiro descuidado para tragar e consumir em suas entranhas. Poucas quadras distante de minha casa eu já me encontraria totalmente perdido. Assombrava-me a tal ponto a capacidade do indivíduo condutor do veículo de distinguir uma rua de outra que não podia acreditar na inexistência de um artifício que o auxiliasse.

Perguntei a minha mãe como se explicava tal maravilha, e ela respondeu:
- Eles têm um itinerário!

Minha mãe sempre foi concisa em suas respostas. Infelizmente a palavra itinerário não fazia parte do meu vocabulário, nem mesmo a palavra vocabulário fazia parte do meu vocabulário. Fiz uma cara de profunda perplexidade ao ouvir sua resposta e recebi então uma complementação:
- Eles seguem uma linha!

Era isso! Uma linha! Tudo havia sido esclarecido. Era evidente que o motorista jamais se perderia. Bastaria somente seguir a linha!
Mas então outras questões invadiram minha mente:
- Do que eram feitas essas linhas? Quem as esticara rua a fora? Cada ônibus seguia sua própria linha? Como eles faziam para cruzar as ruas sem se enrolarem um na linha do outro?
Essas dúvidas saltitavam alegremente zombando de minha falta de saber.

Era noite e a escuridão tornava o enigma ainda mais enigmático. Seguir uma linha nessa escuridão toda. Como era possível? Grudei-me à janela do coletivo e passei a observar atentamente o lado externo à procura de algum indício que apontasse a solução desse mistério. Nada encontrei. Levantei-me de meu assento e dirigi-me à frente do ônibus tentando obter uma visão da rua semelhante à do motorista, na esperança de entender o complexo estratagema que o guiava. Ao chegar, imediatamente decifrei a charada: as linhas estavam desenhadas no chão!

O asfalto estava coberto das tais linhas. Contínuas, tracejadas, duplas contínuas, tracejadas de um lado e contínuas do outro, umas eram brancas outras amarelas. Havia uma população de sinais pintados no chão, todos, obviamente, fazendo parte de um intrincado código que somente os motoristas de ônibus conheciam e que os impedia de se perderem naquela vastidão.

A tranqüilidade tomou meu ser. Havia ordem na natureza e todos os seus elementos operavam em harmonia. Então, quando a paz reinava em meu espírito, o motorista desviou e passou a circular por ruas sem as linhas pintadas em um frenesi incontrolável de guinadas à direita e guinadas à esquerda. Ficou nessa loucura por vários minutos até que chegamos em casa.

Minha tão perfeita teoria havia ido por água abaixo. Desesperado e sem uma explicação que acalmasse minhas lancinantes dúvidas, vi-me obrigado a aderir ao único esclarecimento possível: mágica!
Sim, os motoristas eram criaturas dotadas de fabulosos poderes mágicos. Poderes que lhes deferiam um incrível senso de localização espacial e que permitia sua locomoção por qualquer lugar, por mais distante e intrincado que fosse.

O deslumbramento que aqueles feitos maravilhosos me proporcionaram ficou tão marcado em minha imaginação infantil que coloquei os motoristas de ônibus entre meus super-heróis preferidos, ao lado do Ultraseven e do Robô-Gigante.


*Divido minha infância em baixa (0-3 anos), média (4-7 anos) e alta (8-11 anos), para fins de enquadramento histórico.

O Pequeno Príncipe - Antoine de Saint-Exupéry

 (...)
"E foi então que apareceu a raposa:
- Bom dia - disse a raposa.
- Bom dia - respondeu polidamente o principezinho que se voltou mas não viu nada.
- Eu estou aqui - disse a voz, debaixo da macieira...
- Quem és tu? - perguntou o principezinho.
- Tu és bem bonita.
- Sou uma raposa - disse a raposa.
- Vem brincar comigo - propôs o princípe
  - estou tão triste...
- Eu não posso brincar contigo - disse a raposa. - Não me cativaram ainda.
- Ah! Desculpa - disse o principezinho.
Após uma reflexão, acrescentou:
- O que quer dizer "cativar"?
- Tu não és daqui - disse a raposa. - Que procuras?
- Procuro amigos - disse. - Que quer dizer cativar?
- É uma coisa muito esquecida - disse a raposa. - Significa "criar laços"...
- Criar laços?
- Exatamente. Tu não és para mim senão um garoto inteiramente igual a cem mil outros garotos. E eu não tenho necessidade de ti. E tu não tens necessidade de mim. Mas, se tu me cativas, nós teremos necessiddade um do outro. Serás pra mim o único no mundo. E eu serei para ti a única no mundo...
Mas a raposa voltou a sua idéia:
- Minha vida é monótona. E por isso eu me aborreço um pouco. Mas se tu me cativas, minha vida será como que cheia de sol. Conhecerei o barulho de passos que será diferente dos outros. Os outros me fazem entrar debaixo da terra. O teu me chamará para fora como música. E depois, olha! Vês, lá longe, o campo de trigo? Eu não como pão. O trigo para mim é inútil. Os campos de trigo não me lembram coisa alguma. E isso é triste! Mas tu tens cabelo cor de ouro. E então serás maravilhoso quando me tiverdes cativado. O trigo que é dourado fará lembrar-me de ti. E eu amarei o barulho do vento do trigo...
A raposa então calou-se e considerou muito tempo o príncipe:
- Por favor, cativa-me! - disse ela.
- Bem quisera - disse o principe - mas eu não tenho tempo. Tenho amigos a descobrir e mundos a conhecer.
- A gente só conhece bem as coisas que cativou - disse a raposa. - Os homens não tem tempo de conhecer coisa alguma. Compram tudo prontinho nas lojas. Mas como não existem lojas de amigos, os homens não têm mais amigos. Se tu queres uma amiga, cativa-me!
- Os homens esqueceram a verdade - disse a raposa. - Mas tu não a deves esquecer. Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas."

Essa passagem de "O Pequeno Príncipe" foi enviada pelo Google Talk por uma pessoa muito especial, que me faz lembrar de outra pessoa que me cativou profundamente.

Sem Tempo

Hoje estou sem tempo.

Ontem estava sem tempo também.

E anteontem também.

Creio que antes de anteontem também.

Para falar a verdade, acho que tenho estado sem tempo
faz um bom tempo.

Uma dúvida me assola...

Por onde tem andado meu tempo se faz tempo que eu não
tenho tempo?

Ando tão apressado que chego a pular linhas.

Nunca fui de pular linhas.

E isso me diz que meu tempo não está aqui, pois o tempo
não pula, ele voa.

Mas então onde está meu tempo?

Se não está comigo certamente está com alguém.

Estaria algum de vocês com meu tempo?

Se estiver, por favor, não perca tempo (o meu tempo),
devolva!

Nem que seja o que sobrou.

Não precisa pagar juros.

Não tenho tempo pra calcular juros.

A bem da verdade, não tenho tempo para calcular nada.

Mas descobrirei o que aconteceu com meu tempo.

E faço isso logo que eu tiver algum. 

Pensamento de um "Eu" Náufrago

Há um tempo atrás eu ainda não havia assistido ao filme "O náufrago", aquele no qual o personagem interpretado por Tom Hanks fica alguns anos compulsoriamente num resort tropical. Aluguei então o referido DVD. Embora no início eu tenha acreditado tratar-se de um comercial da Federal Express, ela acabou revelando-se um bom entretenimento.

Como todo náufrago que se preza, ele sobreviveu a um acidente insobrevivível e amanheceu estirado como um pedaço de bacalhau às margens de uma praia em uma ilha inabitada. Aos poucos foi habituando-se ao local e aprendendo a sobreviver naquela terra de privações.

Imagino-me em semelhante situação, acordando em meio à areia na deserta ilha e pensando o que fazer a partir de então. Creio que, primeiramente, eu levantaria. Eu detesto deitar na areia, e estou certo que a sensação de centenas de milhares de minúsculas partículas pedregosas coladas à minha pele por horas não me proporcionaria encanto.

Em segundo lugar, procuraria a presença de um indivíduo humano ou, ao menos, sinais de uma civilização, tais como: tiroteios, acidentes de trânsito, perseguições policiais, atentados suicidas, ou outras atividades que definem nossa espécie. Obviamente não encontraria, caso contrário eu não estaria em uma ilha deserta.

A essa altura, minhas funções gastrintestinais já estariam dando sérias demonstrações de sua impaciência alimentar. Sairia então à procura de alguma substância comestível que não fosse por demais repugnante, como cocos, frutinhas silvestres ou outro vegetal não venenoso. Entretanto, levando-se em conta meu limitadíssimo conhecimento botânico, eu somente descobriria seu possível poder tóxico através do método de tentativa e erro.

Caso não encontrasse o tão almejado vegetal, e pressionado pela sofreguidão nutricional, seria obrigado a partir em busca das tais substâncias repugnantes, as quais, estou certo, abundariam.

Quanto à falta de companhia - situação que deixou o personagem do filme no limiar da sanidade - creio que não existiriam maiores problemas no meu caso, visto que, com algumas semanas sem medicação, todos os objetos daquela ilha - animados ou inanimados - estariam prontamente disponíveis para prolongados bate-papos sem hora para terminar.

E então, após alguns anos de intenso penar, haveria de ser resgatado de minha prisão insular. E em casa, acolhido por parentes e amigos venturosos com meu retorno, pegaria meu jornal e exclamaria após lê-lo por inteiro:
- Não há lugar como nosso banheiro!

Visão do Mundo

Certo dia, olhei para o horizonte, cerrei as sobrancelhas e, num furioso impulso, disse:
- BASTA!

Não podia mais tolerar aquela situação. Tinha que tomar medidas enérgicas e acabar com aquela palhaçada de uma vez por todas. Estava decidido, e nenhuma força natural iria impedir-me de seguir minha resolução. Fui ao oftalmologista, peguei minha receita e mandei fazer meus óculos.

Já estava cansado de perder o ônibus porque não podia ler sua identificação até o momento em que ele estivesse a oito metros de distância. Já estava farto de olhar para o mundo e ver somente borrões verdes, no lugar das árvores, manchas cinzas, no lugar dos prédios, e massas disformes, no lugar das pessoas.

Certamente, como todo o lunático, estou exagerando um pouco nos fatos. Minha miopia é de somente meio grau e provavelmente o mundo nunca foi tão medonhamente distorcido quanto eu acreditava estar vendo. É claro que, somados o meio grau de miopia com o outro meio grau de astigmatismo, eu era acometido por um efeito equivalente a um grau de miopia em cada olho. E esse um grau de miopia me estava levando a um grau de loucura que achei por bem aniquilar logo no início, antes que tomasse maiores proporções.

Apesar de minha teimosia e de minha profunda resistência em utilizar equipamentos de auxílio visual, acabei por acatá-los. Entretanto, sabia que não poderia valer-me de armações muito espessas, já que utilizo muito da visão periférica para me movimentar pelo mundo, e a idéia de ter meu campo visual significativamente reduzido não me trazia encanto. Já havia experimentado aqueles óculos de segurança que têm aros grossos e laterais cobertas por uma tela plástica e que, para o meu caso, poderiam muito bem ser chamados de óculos de insegurança, pois não houve cabo, trilho, pedra, estrutura, desnível, rachadura ou qualquer outro elemento saliente próximo ao nível do solo que eu não tivesse chutado ou tropeçado.

Por fim, após muita busca, encontrei a armação que satisfazia a todos os aspectos ópticos, práticos e econômicos de minha necessidade visual. Uma armação leve, muito delgada e, o melhor de tudo, barata (levando-se em conta o superior benefício proporcionado).

É bem verdade que algumas vezes chego até mesmo a esquecer que a estou utilizando, a ponto de enfiar os dedos na lente quando da necessidade de esfregar os olhos. Alguma alma furiosa e acusatória poderia apontar-me o dedo e, bufando, inquirir:
- Por que você não fez isso antes?

Talvez essa demora em minha decisão me tenha proporcionado algo muito melhor em longo prazo. Devo confessar que talvez essa tenha sido uma das melhores surpresas que já me aconteceram até o momento. Quão inesquecível foi redescobrir, depois de tantos anos, todos os detalhes da natureza, as folhas, as rachaduras das cascas das árvores, o aspecto granuloso das nuvens, a rica quantidade de matizes que só um pôr-do-sol pode exibir, e todos esses minúsculos pormenores que carregam a essência do que é belo nesse mundo e que eu já havia esquecido.

De certa forma, todos nós, com o passar dos anos, nos acostumamos com essas particularidades a ponto de não mais as perceber, e um mundo cheio de detalhes e rico em beleza é simplesmente ignorado e substituído por um fundo cinza onde desempenhamos nossa rotina.

Aqueles óculos podem ter somente remediado a miopia de meus olhos, mas com certeza curaram a miopia de minha mente.
 
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