Sofrimento Coletivo

AVISO: Antes que leiam este artigo, gostaria de deixar bem claro a ausência absoluta de exageros no relato abaixo descrito. Também digo que o texto a seguir é proibido para menores de 10 anos por conter relatos de cenas que podem causar trauma psicológico.



Hoje, sempre quando vejo ou entro em um ônibus, não posso deixar de me lembrar de como pode ser desagradável você estar em um deles no dia errado e na hora errada.

Certa vez, entrei em um ônibus de uma linha reconhecidamente (mas não por mim, até aquele momento) freqüentada por imensas massas humanas que, em seus irrefreáveis desejos por retornar aos seus lares, estão dispostas a qualquer coisa por um lugar ao sol (ou longe do sol, se o ônibus for daqueles com janelas minúsculas ou se o dia estiver nublado).

Entrei, desavisado, crendo que tal itinerário era tão somente mais um comum itinerário, com um comum número de usuários, em um comum dia, nas comuns ruas de minha comum cidade.

Minha surpresa foi bastante incomum. No começo as coisas estavam boas (quase tudo é assim no começo), mas, à medida que os pontos de embarque foram se sucedendo, o povo, em sua sequidão por um transporte, foi se acumulando em extraordinário número no interior do extra-ordinário ônibus (era um daqueles bastante antigos e que não proporcionava o mínimo de conforto).

A cada indivíduo que, espantosamente, conseguia entrar na estufada carroceria do coletivo, ouvia-se um gemido de dor de alguém mais à frente e que estaria sofrendo as conseqüências da onda de pressão resultante.

O motorista, senhor visivelmente embrutecido pelos anos de sofrimento, parecia nutrir um certo prazer mórbido quando parava em um novo ponto de embarque. Os gritos desesperados de "Não pára! Não pára!", que a massa comprimida desprendia, pareciam soar como um sádico incentivo ao enlouquecido condutor.

Quando tudo parecia perdido e a esperança era mercadoria rara, uma senhora de uns cento e dez quilos, obcecada com a idéia de entrar no transporte coletivo, não enxergava a real impossibilidade física de sua obsessão. Tentou uma vez. Falhou. Tentou uma segunda vez, e agora com um pouco mais de força. Falhou novamente, mas dessa vez pude ouvir um grito de desespero de alguém próximo e que certamente teve alguma parte de seu corpo esmagada na tentativa.

Sua obstinação só não era maior que a indescritível aflição na qual a nação dentro daquele ônibus já estava afundada. A obesa senhora deu então alguns passos para trás e, num furioso impulso, atirou-se contra o maciço paredão humano a sua frente.

Nesse momento, mesmo que atordoado com o impacto, pude ouvir a lataria ranger como os rugidos de cem leões esfomeados, e escutei alguns dos rebites serem disparados como tiros de um trinta e oito. Um senhor de cerca de setenta anos que sentava mais a frente, foi ejetado pela janela, por conta de uma lei da física que diz que dois corpos não podem ocupar o mesmo espaço ao mesmo tempo.

Homem de sorte. Havia conseguido sair dali.

Quando, segundos mais tarde, minha tontura passou, não pude acreditar na situação em que estávamos. Cri que tudo fosse somente mais uma alucinação. Tentei pegar meus antialucinógenos, mas não consegui me mover. Somente meu olho direito, prensado contra a janela, é que possuía algum grau de liberdade.

Com esse olho vi passar o ponto onde queria descer, mas nem liguei para isso. Havia coisas mais importantes com o que se preocupar. Nossas vidas.

Um muito magro senhor, tão obstinado em descer como a tal senhora em subir, foi, com uma fúria admirável, rastejando como uma aranha pelo teto, pressionado pelas cabeças dos seus afligidos semelhantes até alcançar a porta. Tentativa inútil. O ônibus havia se tornado um bloco compacto e o motorista não podia abrir mais a porta, por mais que desejasse.

Nossa única esperança era uma oficina mecânica e um maçarico.

O motorista, agora também assustado com a obra de suas mãos, resolveu ignorar o seu itinerário e procurar ajuda profissional para nosso denso problema.

Seguimos cautelosamente rumo à garagem da companhia. No caminho, quase caímos em um arroio, quando o motorista usou a bengala de um velhinho para fazer a mudança da marcha e pisou no rosto de um passageiro quando tentou acionar o freio.

Uma voz, muito debilitada, manifestou uma idéia que poderia nos dar mais algum tempo de vida. Disse ela:
- É óbvio que não podemos respirar todos ao mesmo tempo. Vamos nos organizar e utilizar o ar que nos resta com sabedoria. Vamos nos dividir em três grupos, os que estão à direita, os que estão à esquerda e os que estão debaixo dos bancos. Um grupo respira de cada vez. Vamos lá! Os da direita... agora os da esquerda... agora os que estão debaixo dos bancos...

Parece que, em matéria de oxigenação, não adiantou em muita coisa, mas ao menos desviou um pouco a nossa atenção do suplício pelo qual passávamos.

Quando enfim chegamos à garagem, respiramos, um grupo de cada vez, aliviados. Pude então finalmente desmaiar sabendo que sairia de lá, de algum jeito. Os mecânicos logo trataram de desparafusar a carroceria e retirar os sobreviventes de dentro do veículo. Ambulâncias já aguardavam no portão a essa altura.

Quando recobrei os sentidos, dois dias mais tarde, estava deitado em uma maca de um hospital superlotado. Ainda tinha uma gravata amarrada no meu pé direito, uma meia na cabeça e algumas moedas na boca. Mas o importante é que, apesar do horror daquela viagem, eu ainda estava vivo e havia saído sem maiores traumas psicológicos.

Eu acho.

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